DESPENALIZAR O CONSUMO DE DROGA
Um toxidodependente para comprar um grama de heroína por dia, a dez contos, tem que gastar por ano 3650 contos. Como, na maioria das vezes, não dispõe deste capital, é obrigado a roubar para o conseguir.Para isso vende o produto do crime a um terço do valor real. Resultado: ele tem que roubar, seja o que fôr, no valor de quase onze mil contos num ano. Caso seja preso, aí a factura aumenta:
some-se o preço do trabalho policial, do advogado, do tribunal, dos tratamentos médicos na prisão, dos custos acrescidos em caso de infecção do vírus HIV...Com este raciocínio, bastante prático, é fácil concluir que os custos finaceiros e sociais da proibição do consumo de droga se repercutem por toda a socieade e não apenas pelos cidadãos que vivem de perto esta realidade.
Afinal o que é um toxicodependente ou um
consumidor? Um
doente? Um
criminoso por comprar e consumir produtos ilícitos? Um marginal?
Uma pessoa que dentro da sua liberdade individual faz uma opção?De acordo com a legislação portuguesa aquele que consome drogas é um criminoso e como tal pode ser julgado e condenado à prisão. Afigura-se agora uma mudança de cenário neste sentido. Pela primeira vez o Estado consagrou o princípio de que o toxicodependente é um doente e que não deve ser preso.
No entanto, a proibição continua, ou seja, fumar um charro, snifar, dar um chuto, cacilhar o parâmetro, apanhar uma broa, tripar ou curtir, tudo isto deixa de ser crime, como acontece noutros países, mas não deixa de ser proibido. As drogas continuam a ser substâncias ilegais e, por isso, proibidas, mas o consumidor não vai preso, não é um criminoso,
fica apenas sujeito a uma multa, isto desde que a quantidade de droga que tiver consigo não exceda o limite considerado adequado para consumo próprio.
Atenção: não se trata de despenalização, trata-se de descriminalização, uma vez que o consumo continua a ser punido. Esta primeira mudança na atitude do Estado em relação às drogas está consagrada no projecto de lei do Governo que, juntamente com os projectos do PCP, da JSD, e do Bloco de Esquerda, foi discutido no dia 21 de Junho de 2000 na Assembleia da República.
Com este projecto de lei o Governo tem como principal objectivo retirar o carácter criminoso com que a lei actual classifica o consumidor de drogas.Cada ano que passa o número de toxicodependentes aumenta 20%. Destes, 50% são contaminados com o vírus da sida e mais 28% morrem de overdose. A proibição aumenta ainda o caos no sistema prisional. Portugal ainda não está no pelotão da frente, ocupado pelos Estados Unidos, onde um em cada quarenta cidadãos do sexo masculino entre os 14 e os 34 anos, está preso. Mas para lá caminha com o recorde europeu de
um detido por cada 71 cidadãos.
De uma forma geral a população está consciente da ineficácia do actual sistema e sofre as suas consequências a diversos níveis: os familiares atingidos pelo problema que desorganizam a vida de todos os que os rodeiam, os impostos acrescidos para pagar os tribunais,
prisões e polícias incapazes de reduzir a oferta de drogas no mercado, os roubos e a insegurança. Mas, por outro lado, a população teme a mudança para cenários alternativos, receia que a legitimação das drogas represente um salto no escuro que possa provocar efeitos ainda mais nocivos do que o proibicionismo.
Para além das incertezas das pessoas,
outra questão que se tem colocado é a de saber se a descriminalização do consumo colide ou não com as convenções internacionais a que Portugal se encontra vinculado. De acordo com o Professor Faria da Costa, as convenções da ONU não impõem a criminalização do consumo de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas.
"O que as convenções impõem é a proibição do consumo no sentido de impedir a total liberalização", diz o professor (
citado do Programa de prevenção da Toxicodependência - Projecto Vida).
A solução da liberalização do consumo e do comércio de drogas tem tido escassos defensores, pelo que envolveria a total ausência de regras, a não ser as regras do livre funcionamento do mercado.
Uma outra medida mais moderada consiste na legalização do consumo em que a licitude do mesmo é estabelecida em nome da liberdade individual. Esta é a proposta do
Bloco de Esquerda que alega não haver razões para que o consumo das drogas leves, como a cannabis e os seus derivados, continue ligado ao circuito clandestino.
"A legalização da venda de drogas leves é um grande passo para a necessária separação dos mercados. A experiência holandesa provou que esta separação acompanhada de informação aos consumidores, contribui para prevenir o acesso e consumo das drogas mais nocivas para a saúde. A Holanda não precisou de romper com nenhuma convenção internacional para ter a sua própria interpretação das leis em vigor e para avançar com esta experiência pioneira no seio do proibicionismo", disse o dirigente do Bloco de Esquerda, Miguel Portas, num debate realizado na Faculdade de Ciências, em Lisboa.
À semelhança do que defende o Bloco de Esquerda,
também o Presidente da Assembleia da República, Almeida Santos, propõe que o Estado chame a si o controlo da importação de drogas a preços de mercado e a distribuição, gratuita ou em qualquer caso sem lucro, pelos cidadãos portadores de um cartão que os identifique como toxicodependentes, com referência à droga de que dependem e à dose de que precisam.
Contra esta medida ou qualquer outra que vise alterar a actual lei da droga está o Partido Popular. Em declarações ao Jornal "Público" o deputado do PP e candidato presidencial,
Basílio Horta, sustentou que o seu partido é contra qualquer tipo de descriminalização, alegando que "estas medidas nada têm a ver com o modelo de sociedade que existe em Portugal" ). O PP defende ainda a realização de um referendo sobre esta matéria.
Vitalino Canas, Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros com a tutela do combate à droga e à toxicodependência considera um risco desnecessário submeter a referendo nacional as alterações ao regime legal sobre o consumo de drogas, que o Governo propõe.
"Um referendo sobre esta legislação correria o risco de ter uma participação muito baixa e com isso inviabilizaria uma medida essencial, afirmou Vitalino Canas em entrevista ao jornal "Público".
O receio do secretário de Estado é compreensível, uma vez que a mentalidade da sociedade portuguesa teme as consequências da droga e vê o toxicodependente como um marginal. Na situação actual, o clima que se vive não é ainda a favor do consumo. O problema fundamental para a maioria das pessoas não é a repressão, mas sim o tratamento. Ainda não existe o consenso cultural, social e político à volta desta questão capaz de tornar viável o caminho para a descriminalização.
O que parece claro é que
o abandono da via repressiva não é a solução mágica para acabar com o vício das drogas, mas pode ser o primeiro passo para que possa ter lugar uma discussão sobre estratégias de prevenção, tratamento e reinserção social que aproveitem de melhor forma as verbas hoje consagradas ao reforço do aparelho repressivo.
Texto de: Gracinda Pereira e Marisa Conde
LEGALIZAÇÃO JÁ!"A dependência em relação à droga é um problema de saúde. Desta forma não existe mais razão para proibir a venda de drogas àqueles que delas estão dependentes, do que para proibir a venda de calmantes àqueles que não conseguem dormir."
Prof. Dr. Pedro ArrojaOs argumentos pela despenalização do consumo de drogas leves são essencialmente contra as sanções previstas na lei. As sanções contra o uso de droga limitam impropriamente a liberdade dos adultos de usarem substâncias que não são mais perigosas que outras actualmente disponíveis;
- a criminalização do consumo das drogas não conseguiu reduzir significativamente o consumo;
- as sanções aumentam o risco de consumo de um mercado ilícito;
- a criminalização do uso da droga induz os jovens ao consumo e à venda;
- a proibição do consumo de droga é causa da maioria dos crimes contra pessoas e contra a propriedade.
Eis alguns efeitos da proibição que a despenalização pode eliminar:
1)
A proibição da produção de droga gera um primeiro efeito: aumenta o preço. Este passa a reflectir, não apenas todos os custos de produção, mas também a compensação exigida pelo produtor para cobrir o risco de cair nas malhas da lei. Quanto mais dura for a lei maior é o risco e maior será o preço. A despenalização eliminaria este risco e faria baixar o preço.
2)
Com a despenalização seriam as empresas farmacêuticas que produziriam e comercializariam as diferentes variedades de droga, o que faria com que o negócio deixasse de ser compensador para os traficantes. A baixa de preços também faria com que a necessidade dos toxicodependentes recorrerem ao crime, para adquirirem o produto, diminuísse.
3)
A proibição desencoraja os consumidores a admitirem publicamente o seu estado de dependência em relação à droga e de procurarem ajuda junto da família, dos amigos e dos profissionais de saúde. Com a despenalização muitos toxicodependentes procurariam livremente ajuda profissional, como acontece com os alcoólicos e os consumidores de tabaco. As associações privadas, como os Alcoólicos Anónimos e públicas tenderiam a surgir espontaneamente e um número maior de toxicodependente acabaria por se subtrair ao vício.
4)
A proibição aumenta os perigos que o consumo de droga pode causar a terceiros. Quantos acidentes de automóvel não serão causados por condutores sob os efeitos da droga? Nas estatísticas oficiais, zero. A despenalização da droga permitiria actuar para prevenir os efeitos sobre terceiros resultantes do seu consumo. Por exemplo, em relação aos automobilistas, seriam postos em prática testes semelhantes àqueles que existem em relação ao álcool.
Por isso...
Se o consumidor deixar de ter de recorrer ao mercado clandestino, está facilitado o trabalho de reinserção social desse cidadão. Fora da espiral dos preços do mercado paralelo, o consumidor terá condições de se ver livre do contacto com o crime e esse pode ser o primeiro passo em direcção ao tratamento e à integração plena numa sociedade que aceite as drogas como elas são, sem falsos preconceitos.
CURIOSIDADES:
Álvaro de Campos em 1914, heterónimo de Fernando Pessoa legou-nos em poesia - o Opiário - um relato muito explícito sobre os efeitos do ópio e perfil do opiómano.Sem colocar a questão de saber se a biografia do autor explica ou não a sua obra, Pessoa, com o seu Opiário deu um grande contributo para avaliar o grau de conhecimentos que naquela época se tinha sobre a dependência de uma substância tão adictiva, o que se compreende melhor no contexto das relações privilegiadas que Pessoa manteve com personalidades ligadas a Macau e ao meio britânico, onde o consumo de ópio estava bastante arreigado.
Fernando Pessoa conheceu de perto as vicissitudes a que se expõem os consumidores de ópio, o que lhe permitiu reconstituir com fidelidade a trajectória tipo do verdadeiro opiómano.
"É antes do ópio que a minh' alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente. "
"A vida a bordo é uma coisa triste
Embora a gente se divirta às vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver persiste. "
"Por isso eu tomo ópio. É um remédio.
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio. "
"Levo o dia a fumar, a beber coisas,
Drogas americanas que entontecem,
Eu já tão bêbado sem nada! Dessem
Melhor cérebro aos meus nervos como rosas."
Também Mário de Sá Carneiro (1890-1916) deixou elementos suficientes nas suas obras ("Confissão de Lúcio", "Céu em Fogo", "Dispersão", "Indícios de Ouro") para se poder suspeitar que o interesse pela droga teria contribuído para acelerar "uma espécie de delírio poético" (Simões, 1940), prelúdio das fantasias auto-destrutivas, que se consumaram no suicídio quando tinha 26 anos de idade.
No poema "Álcool" são os vocábulos 'droga', 'ópio', 'morfina' que, metaforicamente melhor exprimem o seu estado de espírito:
"Que droga foi a que me inoculei?
Ópio de inferno em vez de paraíso?
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eterizo?
Nem ópio, nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante -
Manhã tão forte que me anoiteceu."
Camilo Pessanha (1867 - 1926), um dos maiores poetas simbolistas portugueses, foi dependente do ópio até à hora da morte, aos 59 anos em Macau, vítima de tuberculose.
Camilo Pessanha assumiu publicamente a sua dependência, em carta dirigida a Trindade Coelho, parcialmente transcrita no "Diário de Notícias" onde o poeta confessava abertamente o seu vício:
«de regresso a casa, deitei-me, segundo o costume ao comprido - perinde ac cadaver - remirar-me no bom acabamento da obra feita. Naturalmente, enquanto Águia de Prata ia preparando e dando-me a inspirar o inefável tóxico consolador produzia-se a pouco e pouco em mim esse delírio lúcido, dizem, da intoxicação pelos hipnóticos, em que sem perder a consciência da situação em que se está se evoca no espírito com absoluta fidelidade e perfeita nitidez, uma outra situação, em outro lugar ou em outro tempo, como se vivesse simultaneamente das vidas muito distantes uma da outra.»
Da sua obra, destaca-se o poema
Branco e Vermelho, onde o poeta descreve o estado de privação dos opiómanos:
"Até ao chão, curvados,
Exaustos e curvados,
Vão um a um, curvados,
Os seus magros perfis;
Escravos condenados,
No poente recortados,
Em negro recortados,
Magros, mesquinhos, vis."
"Como um deserto imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso...
Que delícia sem fim!
A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente imenso,
Foi um deslumbramento.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso
Num doce esvaimento."
Fonte:
Trabalhos finais da cadeira de Ciberjornalismo do ano lectivo 1999/2000